segunda-feira, novembro 27, 2006

No sorriso louco das mães

"No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e orgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo.
São silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos. Porque
os filhos são como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudez de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado
por dentro do amor."

Herberto Helder

domingo, novembro 26, 2006

Gosto de Mário Cesariny

O primeiro contacto que tive com o artista foi no secundário quando tive de fazer um trabalho sobre o surrealismo, nessa altura li várias entrevistas e lembro-me que numa delas ele dizia que durante o tempo da ditadura acordava sempre tarde e más horas e estava desempregado, como se pode imaginar esta situação era problemática pois o regime considerava-o preguiçoso e fazia-lhe diversas "visitas"(e ainda assim ele não deixou de ter esta atitude corajosa).Assim que a ditadura acabou Mário Cesariny passou a acordar cedo e a aproveitar bem o dia...sempre achei esta atitude muito interessante pois demonstrava que a sua vida era um acto de resistência.
Decidi colocar dois poemas de Mário Cesariny que gosto(entre muitos outros). Um deles é a Leitaria e o outro é You are Welcome to Elsinore....aqui vão:

you are welcome to elsinore

"Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar."


Pastelaria

"Afinal o que importa não é a literatura nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra."

Aqui ficam duas pérolas da poesia portuguesa!
Ao Mário Cesariny desejo que a terra lhe seja leve pois a vida já lhe deve ter pesado bastante.

sábado, novembro 25, 2006

Até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza.

O que querem que façamos?(ouve-se um corpo estranho constituído por 6 vozes perguntar) do público uma voz feminina e fininha diz: "Ó Vera podias dançar..."

Assim se passou ontem no Grande Auditório da Culturgest por volta das 21.30. A sala não estava cheia de gente, mas estava cheia de expectativas. Vera Mantero, bailarina e coreógrafa iria apresentar a sua última criação que já tinha sido apresentada em França. Os rumores corriam: "Não é muito conseguida";"Funciona muito bem!". Só vendo é que as dúvidas se podiam dissipar. O que mais me agrada nestes espectáculos é a postura do público, gosto quando alguém se chateia e a meio do espectáculo, nos silêncios coreografados começa a opinar. Depois - automaticamente -criam-se duas facções no público, uma que manda calar toda a gente(até mesmo quando a peça pede a participação do público) e outra que não se faz rogada e mete o nariz e opina e fala mal e fica confusa porque afinal a Vera é de Dança e que raio de dança é aquela?! Como alguém inexperiente nestas coisas que estava ao meu lado me perguntava: "Mas ela não vai dançar? quando é que ela dança?"

De facto a Vera não dançou, ou pelo menos a dança dela não se encaixa naqueles rótulos tão simpáticos que servem para catalogar os espectáculos. Mas a Vera também não nos tinha dito que o seu espectáculo era de dança... Na folha de sala que era distribuída este espectáculo pertencia ao território da performance, ou seja, aquele público foi esclarecido, as suas expectativas é que não (e as expectativas devem ser esclarecidas pelo próprio e não por aquele que apresenta a sua criação). O que apresenta a sua criação o máximo que pode fazer é corresponder a essas expectativas, ou não.

Agora: será que gostei ou não?
Em primeiro lugar senti que aquele corpo que falava em uníssono era bem conseguido, as vozes misturavam-se e por muito que os meus olhos e ouvidos tentassem desvendar cada voz por si era difícil, já para não dizer impossível. Contudo, julgo que fosse esse o objectivo e nesse sentido era interessante, porque avaliando cada um daqueles intérpretes por si cheguei à conclusão que cada um deles era uma personagem,tinha a sua particularidade bem demarcada mas quando se expressavam faziam-no em uníssono e de uma forma igualmente estranha, ás vezes viscosa e monstruosa. Um dos momentos que achei particularmente interessante foi quando cada um deles começou a desvendar o que seria a morte. De repente, aquelas vozes separaram-se e cada um começou a falar por si, a ganhar a sua individualidade, tornaram-se indivíduos e deixaram de "gostar de máquinas"

Acho também que houve momentos felizes do ponto de vista musical e assim lembrei-me continuamente da Meredith Monk e daquele "nonsense" musical. É-me complicado recordar ao promenor de cada parte do espectáculo, mas percebo que de uma forma geral fiquei surpreendida pelos caminhos que a obra tomou.

No que diz respeito às luzes, penso que o facto de ligarem as luzes da plateia em algumas situações não estava bem explorado. Penso que talvez houvesse melhores alturas para confrontar o público e pelo que a coreógrafa disse essa situação ainda não estava definida, estava em fase de experimentação. As luzes do palco pareceram-me interessantes e de alguma forma geométricas o que teria a ver com a movimentação dos intérpretes em apresentações anteriores. Os momentos em que o palco ficou sem luz (não me recordo se foi mais do que uma vez) agradaram-me pois a ideia de aquelas pessoas serem um só corpo, com uma só voz, que por vezes tinha diversas vibrações, era acentuada.

O cenário deixou me algumas dúvidas, não sei se foi a melhor solução, aquele meteoro remetia para uma certa estranheza, mas limitava-se a estar lá, não era "abraçado" pelos intérpretes.

A rapariga do público não viu o seu pedido satisfeito, a Vera não dançou para ela, mas para mim ela dançou.