quarta-feira, novembro 26, 2008

O Frio

Abrir os olhos. O quarto ferve. O corpo sua, calor a mais dentro deste quarto, como sempre. Vou à janela. A surpresa não vai acontecer. Mas há sempre a esperança disso. Abrir as cortinas...Igual, sempre igual, vidros molhados, o sol ficou para outro dia, céu escuro e claramente ameaçador. Pois muito bem, o céu ameaça mas eu também. Um acordar rápido com água bem quente (há que aproveitá-la agora, pois no fim do dia já não vai abundar). Pequeno-almoço tomado. Porta fora. O Frio (e tem de ser com maiúscula pois este frio merece isso) gela o nariz, aperta o casaco e esconde a cara, o Frio gela os dedos, mete as luvas e mãos dentro dos bolsos, pernas geladas, única solução: andar mais rápido. Passar pelo Steve cumprimentá-lo, evitar as duas horas de conversa, não porque não tenha vontade mas porque não tenho tempo. Passar a cabine já num ritmo bem mais acelerado do que aquele que tinha quando saí de casa. Portão azul, casas avermelhadas, janelas e cortinas fechadas, carros parados. Longa rua com casas de um lado e do outro. Chego ao fim da rua e olho para a direita, lá está o supermercado de conveniência, caro, claro está. Ziguezaguear as barras metálicas que atrasam as bicicletas e mais casas. Desta vez com jardins. Começo a ver um gradeamento preto, passo-o ando mais um pouco e cheguei ao estúdio.

Primeira aula do dia. Oito e meia, aquecimento. Lá está a Alana, cabelo molhado, loiro, olhos azuis. Cumprimento do costume e sorrisos também, não fosse aquela a primeira aula do dia com a Beth. Nove horas. Beth entra, canudos ruivos e perfeitos que prende com um pequeno gancho “invisível” no cimo da cabeça. Ai vamos nós. Primeira música, primeiro exercício, Antony & The Johnsons. Não vou dizer as palavras do costume para descrever a felicidade crescente que sinto naquelas aulas. Mais do mesmo. Não chega. Não serve. Difícil tantas vezes, mas tão tão tão bom de se fazer. Explicação atrás de explicação. Nina Simone. Mais uma felicidade. Porra (perdoem a expressão). Que aulas aquelas…que movimento aquele…bom…não interessa…adiante. Pausa. Chá. Talvez. Conversa. Não interessa. Mais uma aula com a Beth, outra turma, o mesmo prazer. Igualzinho.

Parte da manhã concluída. Nariz dentro do casaco, casaco fechado, luvas, mãos nos bolsos, boina na cabeça (tinha-me esquecido da boina). Caminho inverso. Aí vamos nós. Almoço, algo rápido. Quando se divide a cozinha com quatro pessoas só pode ser algo rápido. Batem à porta. Steve. Conversa para o dia todo, simpatia para o dia todo. Falamos enquanto enrolo um cigarro (espero que ele perceba que vou querer fumá-lo quando acabar de o enrolar), ele percebe. Vai arranjar a luz do corredor que se fundiu. Meto a saqueta na caneca, água quente, açúcar, leite, tiro a saqueta, cigarro na boca, prendo o trinco da porta, fecho o casaco. Acendo o cigarro. Cigarro e chá depois de almoço para aquecer................................................

É verdade que enquanto vivemos os nossos dias, eles não passam de dias, não são mais do que isso. Não penso nas recordações que vou ter amanhã. Fazemos a rotina e não pensamos nisso. Quebramos a rotina e também não pensamos nisso. Mas ao que parece, pelo menos é o que sinto, os dias são sempre mais do que dias. São amontoados de recordações, cheiros, pessoas, sabores, saberes, prazeres e tudo o resto que inevitavelmente se encerra neles.
Recordo estes dias agora e penso que cada parte do dia poderia ser descrita ao pormenor, com mais detalhes do que aqueles que até me lembro de ter reparado. Ainda que, honestamente, há coisas que não consigo descrever… como a felicidade em fazer uma aula da Beth Cassani, o prazer em jantar pela primeira vez com a Alana e o Mike….Não vou descrever esses prazeres. Nem enumerá-los. Estão em mim. Fazem de mim o que sou (perdoem o lugar comum).

O Frio gela o nariz, aperta o casaco e esconde a cara lá dentro, o Frio gela os dedos, mete as luvas e mão dentro dos bolsos, pernas geladas. Única solução: correr.
Aí vamos nós.

2 comentários:

MRV disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
MRV disse...

Sem nos conhecermos sei que tens uma vida parecida com a minha e como a de muitos.
Não é facil comentar este tema mas de verdade, captei o feeling. Tambem estou de acordo com o facto de todos os dias serem diferentes. Tu acordas no mesmo quarto todas as manhãs mas sempre que acordas tens em mente um novo objectivo ou uma simples mudança de humor.
Na minha opinião, o que mais me estimula o dia a dia é a comunicação com as pessoas que nos rodeiam, seja para negociar, seja para trocar ideias enquanto se tomam 2 super bocks, sejam para amar ou para conhecer ou ser apresentado...bem são estas coisas que acho que mudam o nosso pequeno mundo.
Esta é a vida que levamos, desligar o gaz quando já não é preciso, e o café da reflexão matinal são rotinas , na minha opinião, saudáveis. Como fumar um cigarro enquanto se observa um zoom out de uma ideia nossa realizada.

Adorei a descrição
Bjs